sábado, 20 de setembro de 2008

Persépolis

Memórias animadas

Rotineiramente, costumamos elogiar os estúdios Pixar por realizar com suas animações obras adultas, que serão bem mais compreendidas pelos pais do que pelas crianças durante as suas exibições. Todavia, a Pixar nunca esquece um certo tom lúdico que não descarta o envolvimento dos pequenos, o que normalmente pode ser explicado pela sua necessidade de retorno financeiro. Quantias enormes são investidas nos seus longas e é óbvio que ninguém é louco de investir tanto dinheiro sem ao menos uma perspectiva razoável, nem que seja apenas para saldar os custos.

Todavia, com um aparato técnico menos ambicioso, este “Persépolis” mostra que é possível, sim, criar longas de animação inteiramente voltados ao público adulto, excluindo as crianças como um alvo em potencial. Baseado na série em quadrinhos homônima, lançada originalmente em 4 volumes, o filme narra a história real de Marjane Satrapi, uma iraniana exilada por seus pais na Europa após o recrudescimento do totalitarismo iraniano ocorrido com a chamada “revolução islâmica”. Marjane, também diretora da animação ao lado de Vincent Paronnaud, passou, de sua infância até a idade adulta, pelos mais importantes fatos da recente história do Irã, e nos mostra, de forma descontraída, como vivenciou estes anos difíceis. Assim, vemos sua infância, quando ainda observa os acontecimentos de uma forma um tanto distanciada (como é comum nessa fase da vida), muitas vezes sendo seduzida por um certo clima “aventureiro” daquilo que lhe é passado pelos mais velhos. Já na adolescência, quando é enviada à Europa pelos pais devido a seu temperamento rebelde, são mostrados seus anos típicos de juventude, de descobertas e também de muita frivolidade. Aliás, Marjane parece ser o tempo todo honesta com o público ao mostrar que, enquanto seus compatriotas estavam vivenciando o caos gerado pêra guerra Irã-Iraque, ela se entregava a uma vida de hedonismos em Viena, muitas vezes até negando suas origens apenas com a perspectiva de ser aceita pelos grupos com quem convive, ao mesmo tempo em que se sentia extremamente culpada por seu egoísmo. Mais tarde, em conseqüência da vida marginal que estava levando em terras austríacas, a jovem retorna à terra natal, onde acaba vivenciando os anos mais duros de repressão religiosa.

Com dito acima, apesar de toda sua carga bastante pesada, a história é narrada com muito bom humor e, ainda, enorme inventividade gráfica. Predominantemente em preto e branco, os diretores, todavia, souberam brincar com os diversos tons próximos a este binário de cores, como o cinza, o que torna a animação muito mais bela que o preto e branco em contraste da HQ. Também interessante a idéia de ser mostrada graficamente a imaginação da menina Marjane, o que gera cenas muito divertidas e intrigantes como aquela em Deus e Karl Marx dialogam (hilário!). Ou ainda a forma bem-humorada como são mostrados os absurdos gerados pelo regime totalitário, como na seqüência em que ela busca por fitas de música ocidental no mercado negro. As cores são utilizadas em poucas seqüências, mas o seu tom ameno corrobora para o tom poético do filme. As vozes de interpretação também são ótimas. Chiara Mastroianni faz a voz de Marjane em sua adolescência e idade adulta; sua mãe, Catherine Deneuve, faz a voz de sua mãe na ficção, enquanto a voz de sua avó é interpretada por Danielle Darrieux (uma das melhores personagens do filme, por sinal).

Contudo, apesar de toda sua beleza e originalidade, alguns aspectos me deixaram um pouco com “um pé atrás”. Não sei se o meio da animação seja eficaz para transmitir a contundência que uma trama tão política exige. Muito embora a comédia seja eficiente e até desejável em assuntos complexos, desde que bem utilizada (como são exemplares geniais filmes como “O Grande Ditador” e “Dr. Fantástico”), e nisso “Persépolis” sabe investir muito bem, o tom de “animação” sempre deixa no espectador um sensação de “irrealidade”, e esse tom ameno um pouco excessivo acaba por tirar a força dos dramas políticos. Só a título de comparação e utilizando como exemplo a ditadura militar que se abateu sobre o Brasil ao longo de 21 anos, imaginemos que um filme em que as torturas aos presos políticos fossem narradas através de imagens animadas de um castelo semelhante a uma prisão e que os assassinatos fossem mostrados através de elipses narrativas. Seria estranho, não? Foi essa sensação de estranheza que tive ao fim da exibição, pois que muitas vezes não sentimos o real impacto dos eventos narrados. E isso me faz ter a impressão de que o formato da animação talvez seja realmente inadequado para tramas de viés político tão acentuado. O filme acaba, desta forma, tornando-se apenas didático, mas pouco eficaz em nos fazer sentir a realidade daquelas pessoas.

Um outro ponto a ser debatido: muitas das situações são mostradas dentro uma perspectiva excessivamente feminina. “Claro, ela é mulher e deve passar a sua visão feminina”, dirão as leitoras. Sim, Marjane é mulher, mas tratar de assuntos políticos dentro de uma perspectiva de gênero me parece uma limitação, não uma virtude. Isso me faz lembrar de uma entrevista que vi há algum tempo, no programa “Entrelinhas” da TV Cultura. Nesta, a escritora Sabina Anzuategui falou algo bastante interessante ao afirmar que os homens conseguem, em muitas ocasiões, criar suas obras sem fazer a barba, enquanto as mulheres criam suas obras sempre passando o batom. Talvez seja essa perspectiva neutra, uma visão dos fatos apenas como ser humano, e não como homem ou mulher, algo que também faça falta ao longo da projeção. Em um regime brutal e totalitário, todos são vítimas, não apenas um dos sexos.

De qualquer forma, “Persépolis” é mesmo um filme para ser visto, e sua não indicação ao Oscar de filme estrangeiro este ano foi um dos maiores equívocos da premiação nos últimos anos. Sua indicação para o prêmio de melhor animação acabou soando apenas como um consolo.

Cotação: ****1/2 (quatro estrelas e meia)
Nota: 9,5
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