domingo, 1 de fevereiro de 2009

Cinemúsica


Piaf – Um Hino Ao Amor
(La Môme)

Para não ser esquecida


A morte é o que de mais certo temos na vida. Esta é uma frase de verdade inquestionável, repetida em qualquer parte do mundo diariamente, independentemente de cultura ou crenças. Buscando superar este fato inevitável, o ser humano tem, ao gerar filhos, uma forma de escapar da mortalidade, fazendo de um novo ser uma continuação de sua existência. Entretanto, se ter filhos é a maneira mais comum de se buscar alguma forma de imortalidade, algumas outras existem e talvez tragam uma sobrevida ainda maior, fazendo com que aquele ser humano seja lembrado até mesmo por pessoas que nunca chegaram a conhecê-lo.

Piaf encontra-se nesta segunda categoria. Sua única filha morreu com apenas 2 anos de idade. E isso foi apenas um dos fatos extremamente tristes de uma vida permeada por imensas dores. Nascida Giovanna Gassion (foi seu primeiro empresário, Louis Leplées, que lhe deu o sobrenome Piaf, que significa “pardal” em francês), ela nasceu pobre, para não dizer miserável, filha de uma cantora de ruas e um pai contorcionista de circo. Praticamente abandonada pela mãe, que vivia pelas ruas bêbada, foi levada pelo pai para viver com a avó, uma cafetina. No bordel, tem as atenções das prostitutas, as quais vê como “mães”. Além da bizzara situação de viver em um cabaré, Édith ainda sofre com uma cegueira momentânea, provocada por uma inflamação nas córneas. Logo depois, é levada pelo pai para viver no circo e, posteriormente, nas ruas, já que o mesmo acaba abandonando a companhia. Em uma das apresentações do pai nas ruas, a platéia exige que a garota também apresente algum número, e eis que ela canta “A Marselhesa”, arrancando aplausos de todos os ouvintes. Mas esse era só o início de uma carreira de enorme sucesso, tendo como contraponto uma vida que continuou repleta de infortúnios.

Entretanto, à parte todas estas dificuldades, Édith tornou-se lembrada de tal forma que inspira filmes como “Piaf – Um Hino Ao Amor” (bastante dispensável este subtítulo piegas em português), produção francesa de 2007 dirigida por Olivier Dahan, a qual mostra-se bastante feliz na sua tentativa de retratar a personagem. Seu aspecto mais peculiar é que ele quase deixa de lado os momentos felizes da vida e carreira da famosa cantora francesa para concentrar-se nos seus momentos doloridos, sofridos. É bastante comum, nas cinebiografias de Hollywood, o roteiro sustentar-se numa série de infortúnios até que o protagonista alcance uma redenção através de sua arte, levando-o ao sucesso e riqueza. Não há redenção em “Piaf”. Desde o início o diretor nos mostra, com uma narrativa não linear, tanto sua infância difícil como o fim de sua vida igualmente sofrido, com um corpo atacado por várias doenças. E isso demonstra claramente que a vida está longe de ser uma estrada “com destino à felicidade”, como tão comumente alguns filmes e programas televisivos querem fazer acreditar. A vida é guiada, muitas vezes, pelo imponderável, sendo a vida de Piaf um belo exemplo disso e os realizadores do longa em comento não buscaram se afastar dessa ideia.

Mas há outros pontos que lembram, sim, o cinema de Hollywood. O esmero na reconstituição de época, a fotografia e, principalmente, a maquiagem que deu à atriz Marion Cottilard as feições de Piaf são excepcionais (a maquiagem, é bom dizer, foi premiada com o Oscar). Por outro lado, à parte a excelência da produção, o elemento que mais salta aos olhos do espectador é a atuação arrebatadora de Cottilard. Arrisco dizer que esta talvez seja uma das mais impressionantes atuações da história do cinema. Muito embora não seja possível afirmar que Cottilard incorporou de fato Édith Piaf (eu, pelo menos, vi poucas imagens de Piaf e não tenho informações suficientes sobre sua personalidade), trata-se de um trabalho de composição meticuloso em que, segundo suas próprias palavras, ela procurou não apenas imitar a personagem histórica, mas também impor uma força interior e emocional que transmitisse todo o turbulento mundo interior da artista. A seqüência em que Édith recebe a notícia da morte de seu grande amor é memorável, belíssima, não só pela forma peculiar como ela foi engendrada, mas também pela força da atriz em cena. É possível que este seja o caso de “Oscar mais bem entregue” de todos os tempos. Não há como imaginar que havia outra atriz que merecia mais a láurea do que Cottilard.

Também interessante a forma como Dahan resolveu pontuar a narrativa com as canções de Piaf adequadas para cada momento mostrado na tela. Clássicos como “Mon Dieu” e “Non, Je Ne Regrete Rien” já emocionam quando simplesmente ouvimos essas canções. Quando associadas a imagens que se coadunam ao seu significado, as músicas adquirem um efeito ainda mais superlativo, podendo levar qualquer assistente às lágrimas. Aliás, talvez seja este um dos poucos problemas do longa. Como já falado anteriormente, Dahan escolheu (ele também é o roteirista) os momentos mais pungentes da vida da cantora para serem mostrados e, utilizando destas ferramentas que catalisam emoções, o filme parece sempre procurar emocionar a platéia, o que pode acabar se tornando manipulador. O problema só não se torna maior porque, é preciso reconhecer, o diretor atinge seu objetivo nesta empreitada, fisgando o público em cada seqüência. Outro problema reside em especular pouco sobre fatos que desabonariam o caráter de Piaf, como o seu possível envolvimento no assassinato de Louis Leplée. Os seus defeitos mais registrados são aqueles mais comuns ou, dependendo do ponto de vista, menos antipáticos, como beber demais ou dar respostas ácidas aos jornalistas. Além disso, ela foi muito mais volúvel em termos amorosos do que é mostrado em cena, fazendo bastante o perfil de celebridade “Caras” que nos é bastante familiar hoje em dia.

Mas o melhor do longa talvez seja a sua capacidade de mostrar que Édith Piaf alcançou, mesmo sem deixar descendentes, o status de imortal. A menina miserável, que tantas agruras sofreu ao longo de sua existência, conseguiu, por meio se sua arte, tornar-se maior do que a vida. Sua voz inesquecível (basta ouvir Piaf uma única vez para conseguir diferenciá-la de qualquer outra intérprete) é capaz de fazer brotar emoções mesmo no coração mais duro, ou mesmo que o ouvinte não entenda nada de francês (eu, por exemplo, confesso que pouco conheço da língua francesa). Uma vida sofrida, mas uma vida imortal.

Cotação: **** (quatro estrelas)
Nota: 9,0
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