domingo, 17 de janeiro de 2010

Julie & Julia


Nem feminista, nem “de mulherzinha”: um filme feminino.


É muito provável que você já tenha assistido a um dos filmes da diretora Nora Ephron, uma das expoentes das comédias românticas que dominaram o fim dos anos 80 e os anos 90. Afinal, quem nunca viu “Harry & Sally” (que não foi dirigido por ela, mas teve o roteiro de sua autoria indicado ao Oscar), longa-metragem já clássico que catapultou Meg Ryan ao estrelato, ou ainda “Sintonia de Amor” e “Mensagem Para Você”, também estrelados por Meg ao lado do super-astro Tom Hanks? São familiares, não? Pois bem, com este “Julie & Julia”, Ephron provavelmente realiza seu melhor filme desde “Sintonia de Amor”, alcançando uma maturidade e equilíbrio talvez ainda inéditos em sua carreira.

Aqui, Ephron tira o foco das relações amorosas para estabelecer o paralelo entre as vidas de duas mulheres com muito em comum, embora vivam em épocas distintas. Uma delas é Julia Child (Meryl Streep), famosa cozinheira norte-americana que, por meio de um livro e um popular programa de TV, fez a classe média americana passar a ter interesses gastronômicos além de um mero hambúrguer, sorvete, enlatados ou tortas de maçã. Já Julie Powell (Amy Adams) era uma funcionária pública que tentou uma frustrada carreira como escritora, mas que tem a ideia de escrever um blog onde relata a missão que estabeleceu para si mesma de, em um prazo de 365 dias, levar a cabo 524 receitas da mestra Julia Child.

O mais interessante, como sempre, não está nas metas que ambas alcançaram, mas no caminho que levou a este sucesso. Tanto Julia quanto Julie são mulheres que encontram na gastronomia uma nova dimensão para suas vidas. Mesmo sendo bem casadas, com ótimos maridos, elas sentem falta de algo que constitua uma plena realização individual. Julia não teve filhos (já havia casado com quase 40 anos e isso provavelmente dificultou tal intento) e viu na culinária algo para tirá-la da trivialidade de uma vida confortável como esposa de um diplomata em Paris. Não que considerasse sua vida ruim, longe disso. Julia era uma mulher alegre e otimista, que via nas relações humanas também uma maneira de se realizar. Mas, como ela mesma afirmava, não sabia e nem queria ser uma inútil. Por seu turno, Julie exerce uma função pública desgastante, onde tem de ouvir as reclamações e mesmo desabafos dos cidadãos que ligam para um serviço de tele-atendimento. Ademais, vê-se fracassada por nunca conseguir terminar os seus projetos, especialmente o maior deles: escrever um livro. São duas mulheres que sabem a importância e o valor da vida familiar (no caso de Julie, ainda descobrindo e aprendendo a valorizar), mas que também carecem de realizações individuais mais plenas. São mulheres femininas que buscam maneiras de afirmação, mas sem hastearem bandeiras (talvez até mesmo sem se darem conta disso) e com seus exemplos trazendo muito mais benefícios do que discursos feministas-sexistas inflamados. Ademais, se o longa não tem ares feministas, ao mesmo tempo também não descamba para o “filme de mulherzinha”. Não há conto de fadas, apenas mulheres tentando dar um novo norte às suas vidas.

Ephron desenvolve muito bem esse paralelo através de recursos de edição e mesmo trilha sonora, estrutura que lembra muito “As Horas”, de Stephen Daldry (também com Meryl Streep no elenco). Sempre quando passamos de uma época para outra, temos uma mudança na trilha, fazendo com que o espectador perceba a transição não só através das imagens. O roteiro (escrito pela própria Nora Ephron, baseado nos livros “My Life In France” e “Julie e Julia”, ambos de Julia Child e Julie Powell, respectivamente) desenvolve-se com uma leveza perfeitamente adequada e eu me senti especialmente identificado com os momentos em que se mostra o nascimento do blog de Julie. É verdade que um comentário no blog já traz uma alegria para seu autor, principalmente quando esse comentário vem de alguém fora de seu círculo de amizades, pois dá logo a sensação de que o veículo está atingindo um certo “sucesso”...:=). Entretanto, a narrativa sofre pequenos deslizes ao tentar encaixar algumas tiradas de tons picantes que seriam mais adequadas a uma comédia romântica, talvez tiques de uma diretora extremamente acostumada a esse gênero.

Além disso, em uma obra com tais características, a participação dos atores se faz essencial e, possivelmente, talvez seja esta a maior razão do sucesso de “Julie & Julia”. Amy Adams está muito bem no papel da blogueira, sem excessos, sabendo em que momentos conferir uma maior carga de emoção à personagem. Enquanto isso, Meryl Streep consegue atingir um nível de entrega talvez ainda maior do que o habitual. Sua Julia está perfeita, com todas as nuances da “original”, ao mesmo tempo em que nunca aparenta artificialidade. Consegue, inclusive, interpretar o andar de uma pessoa bastante alta (como no caso de Julia), parecendo ter realmente 1,88m (ao contrário dos seus 1,68m verdadeiros) e não apenas por efeitos de câmera e saltos altos. Não é à toa que ela já vem amealhando prêmios por este trabalho e deve receber mais uma indicação ao Oscar (que será a décima...quanto? Já perdi as contas...). E se vier a ser oscarizada será com muito mérito.

Streep é uma daquelas atrizes que realmente devem inspirar milhões de jovens a seguirem esta carreira, da mesma forma que Julia inspirou Julie a desbravar novos caminhos na sua vida. Essa conexão que pode se estabelecer entre pessoas que nunca chegaram a se conhecer é outra vertente interessante do filme. Mesmo distantes e vivendo em épocas distintas, seres humanos podem ter os mesmo anseios e dificuldades, ou seja, nunca estamos sozinhos em nossas vicissitudes, havendo sempre alguém que já passou ou passa pelas mesmas dores. É provável que, ao término do longa, você tenha se identificado com algumas das situações mostradas. E isso, com certeza, já lhe fará sair satisfeito com o dinheiro empregado na sessão.


Cotação: * * * * (quatro estrelas)
Nota: 9,0
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