terça-feira, 30 de novembro de 2010

Senna



Mito resgatado


Os documentários em longa-metragem, gênero cinematográfico que vem ganhando mais força nos últimos anos (principalmente com a popularidade de Michael Moore e suas peças contra o conservadorismo norte-americano), tradicionalmente desenvolvem sua narrativa, principalmente quando se trata de biografias, por meio de entrevistas com aqueles que conviveram (ou convivem) com o biografado, além da presença de um narrador (mesmo que em off). A primeira virtude de “Senna”, documentário sobre o lendário piloto brasileiro, um verdadeiro mito na nossa Terra Brasilis, é justamente fugir desta fórmula convencional.

O diretor Asif Kapadia conseguiu desenvolver uma bela narrativa, que perpassa toda a carreira de Ayrton Senna da Silva, com um ritmo quase ficcional, apenas através da edição de imagens dos arquivos (algumas delas inéditas) fornecidas por emissoras de TV (rede Globo entre elas) e a inserção de áudios de depoimentos e narrações de profissionais como Reginaldo Leme e Galvão Bueno (no tempo em que Galvão ainda era narrador e não o chato absoluto que é hoje). O painel que se mostra nos dá uma perspectiva não só das proezas do piloto, mas também da personalidade do Senna ser humano, com suas virtudes e falhas.

Kapadia vai buscar o início da carreira de Ayrton, ainda no kart, em sua primeira temporada na Europa, mostrando as dificuldades que se colocam principalmente para os latinos, tendo de viver longe da família e dos amigos. E assim vamos acompanhando sua ascensão até sua chegada à F1, por meio da modesta escuderia Toleman. A despeito das limitações do carro que tinha em mãos, Senna consegue um resultado excepcional no Grande Prêmio de Mônaco, debaixo de forte chuva, não alcançando a vitória devido ao encerramento prematuro da prova. Esta seria a primeira de muitas oportunidades em que Senna enfrentaria a politicagem dentro do esporte, que no longa se apresenta encarnada no presidente da Federação Internacional de Automobilismo (FIA), o truculento, autoritário e arrogante Jean-Marrie Ballestre. Neste ponto há um detalhe importante: Ballestre era francês, mesma nacionalidade do arqui-rival do piloto brasileiro, o “professor” Alain Prost. E aqui é interessante perceber que, quando da chegada de Senna à McLaren, apesar da competitividade acentuada e ambos os pilotos (ninguém se torna campeão em um esporte individual sem possuir uma forte dose de competitividade circulando nas veias), havia um clima de camaradagem entre eles, proporcionando um bom ambiente na equipe. Esse clima agradável, contudo, vai sendo substituído por um ambiente negro onde as vaidades são exacerbadas e é neste ponto que o documentário aponta para uma derrapada. Prost acaba sendo mostrado como o “vilão” da história, o “inimigo” a ser batido por Senna, e não como um desportista que também almejava as suas vitórias. Tal tendência é ainda mais realçada quando da abordagem da decisão do campeonato de 1989, quando Kapadia parece ter convicção de que o piloto francês foi o responsável pelo acidente que levaria à decisão da competição. Esta atitude meio que serviria para justificar o comportamento semelhante de Senna no ano seguinte, quando parece ter provocado a colisão que também determinou a decisão do título nesta oportunidade.

Há, ademais, um certo apelo à ideia de que Senna pressentiu a sua morte ocorrida no GP de Ímola de 1994, induzindo o espectador a acreditar nesta versão que parece ser acalentada pelos fãs. Na realidade, se trata de uma impressão de alguns que estavam próximos a ele, mas jamais saberemos se é verdade. Aliás, segundo depoimento do próprio piloto mostrado no longa, ele próprio imaginava estar ainda na metade da vida, o que contradiz essa ideia de pressentimentos funesto anunciados pelos comentários em off.

Em outra ponta, o longa é feliz em mostrar as razões que levaram Senna a se tornar um ídolo em nosso país. O Brasil vivia tempos amargos na economia, com a hiperinflação e o aumento exponencial da pobreza. Isso ainda se somava à frustração com os representantes eleitos, sendo que o primeiro presidente após a redemocratização acabou sofrendo o impeachment pelo Congresso Nacional. Como diz uma popular em certo momento, para os brasileiros Senna parecia ser “a única coisa que o Brasil tem de bom” (é bom recordar ainda que o futebol estava em um momento de vacas magras). Ademais, ele sempre demonstrou uma afinidade muito grande com a fé do povo brasileiro, colocando Deus constantemente no centro de seus depoimentos. Assim, vê-se com uma certa naturalidade a catarse coletiva provocada pela morte de Ayrton, o qual naquele momento significava um dos escassos orgulhos nacionais, um vencedor que jamais escondeu sua origem, carregando a bandeira brasileira nos momentos de júbilo.

Para quem acompanha o automobilismo, também é ótimo ver a “era de ouro” da F1 resgatada na telona. Uma época de pilotos vibrantes, que buscavam antes de tudo a vitória, e não meros empregados de firma que cumprem ordens toscas para deixarem colegas ultrapassar, desrespeitando os espectadores, o próprio esporte e a si mesmos (vide os exemplos de Barrichello e Massa). Um tempo em que as escuderias respeitavam a competitividade e não realizavam manobras de equipe para beneficiar piloto A ou B. Bons tempos aqueles em que a F1 era capaz de produzir ídolos em escala global, como Senna, que, mesmo com seus defeitos, muito humanos, fez jus ao status de referência mundial no esporte (não apenas no automobilismo). Eu mesmo nunca nutri muita admiração pela pessoa de Senna (talvez devido a uma certa antipatia gerada pelo excesso de bajulação de Galvão Bueno), mas jamais vi um piloto tão talentoso quanto ele, capaz de proezas únicas, nunca repetidas por Schummachers ou Alonsos que estão por aí. E este documentário, apesar das imperfeições acima apontadas, rende uma bela e merecida homenagem a um desportista que se tornou mitológico.


Cotação:

Nota: 9,0
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2 comentários:

renatocinema disse...

Concordo com você sobre escrever sobre O Poderoso Chefão. Muito complicado. Mas, fiz o meu melhor.

Airton Senna nunca me inspirou. Não sou fã de corridas. Mas, a história dele realmente merece ser vista.

Fábio Henrique Carmo disse...

Renato, seu texto sobre o Poderoso Chefão ficou ótimo. Eu é que não consigo escrever sobre filmes tão primorosos. Abraço!