sábado, 12 de março de 2011

Inverno da Alma



Sobre coragem e convicções


Curioso que, entre os filmes indicados ao prêmio máximo da Academia de Hollywood este ano, dois deles tenham uma premissa similar, embora não idêntica. “Bravura Indômita”, dos irmãos Joel e Ethan Coen, narra a trajetória de uma adolescente em busca de vingança pela morte de seu pai, assassinado por um bandoleiro, enfrentando um ambiente hostil e violento que retrata muito das entranhas da nação norte-americana. “Inverno da Alma”, longa dirigido por Debra Granik (em seu segundo longa-metragem), também tem o ponto de partida em uma garota que, vivendo em um ambiente hostil dos rincões ianques, busca não uma vendeta, mas encontrar o pai desaparecido há dias para que, obtendo sucesso, consiga salvar a residência da família das mãos de credores hipotecários. A semelhança chega até mesmo às surpresas do elenco. Se no filme dos irmãos Coen tivemos o destaque para a novata Hailee Steinfeld no papel principal (sua indicação ao Oscar como coadjuvante soa bastante estranha), a desconhecida Jennifer Lawrence, como a protagonista Ree em “Inverno da Alma” também se mostra uma grata revelação. Ambas têm enorme sucesso ao interpretar meninas fortes que têm de superar o medo e enormes adversidades para alcançar seus respectivos objetivos.

Entretanto, as semelhanças param por aí. Se o filme dos Coen se desenvolve como um típico western comercial (o mais comercial dos longas dos irmãos cineastas), com desenvolvimento da trama e caracterização dos personagens aptos a agradar ao grande público, o filme de Debra Granik se desenrola em um ritmo típico de produções independentes destinadas a circuitos mais alternativos, embora flertando com o suspense concomitantemente. Seus personagens e circunstâncias são apresentados lentamente e sem qualquer sensacionalismo que invoque a empatia imediata do espectador. Vamos descobrindo, assim, que Ree tem uma mãe com problemas mentais e dois irmãos mais novos dos quais tem de cuidar, já que seu pai está envolvido com o tráfico de drogas na região. Ambientado nas montanhas Ozark, no estado do Missouri, a atmosfera densa logo preenche o roteiro (baseado em romance de Daniel Woodrell) e percebemos que a comunidade na qual Ree está inserida, boa parte delas formada por parentes próximos ou distantes, lhe oferece pouco acolhimento.

É neste ponto que o longa fisga o espectador. É difícil não se sensibilizar com a via crucis de uma garota de 17 anos para salvar o próprio lar, sofrendo ameaças de pessoas das quais seria de esperar ao menos uma mão estendida. Nesse aspecto, vale frisar que o longa chega a flertar com o noir, tendo em vista a dubiedade presente em quase todos as personagens, à exceção da protagonista. É aqui que, com já frisado acima, que se sobressai a atuação de Lawrence, talentosíssima em sua juventude. Impressionante como ela utiliza de poucas expressões (quando seria de se esperar até caretas de colegas menos talentosas) para transparecer emoções, externando sentimentos como medo, revolta, solidão e desesperança como grande simplicidade. Da mesma forma, John Hawkes (indicado ao Oscar como coadjuvante), empresta verdade ao titubeante e escorregadio tio Teardrop, um homem também dominado pelo vício, mas que não esquece seus vínculos familiares. A oposição entre essa maldita circunstância familiar e a aversão que Ree sente pela mesma é mostrada de forma contundente na sequência em que Teardrop lhe oferece droga e ela recusa peremptoriamente, afirmando que nunca provará disso.

Por outro lado, a película também funciona como um thriller policial (mais uma vez invocando o noir), trazendo tensão e dúvida em diversas passagens, principalmente em seu clímax (de arrepiar), além de possuir elementos técnicos muito bem trabalhados, como a bela e ao mesmo tempo soturna fotografia. Interessante constatar que “Winter’s Bone” poderia facilmente ganhar circuitos comerciais, fugindo do rótulo de “filme de festival” (ele recebeu prêmios tanto em Sundance quanto em Berlim). Isso talvez mostre que um cineasta não deve abandonar suas convicções (tal como Ree não foge às suas no longa), sendo que agradar ao público deve ser sempre consequência e não o objetivo de um trabalho. No fim das contas, Granik, em sua fotografia de um lado da sociedade americana, se sai mais feliz do que os Coen em sua mais recente obra, cuja nuance comercial foge às características da dupla. Um retrato sem convicção é um retrato falso. Talvez por isso “Inverno da Alma” nos atinja no coração de maneira mais contundente. Vendo o filme, não deixei de lembrar de uma certa frase de Guimarães Rosa, a qual poderia lhe servir como epígrafe: “"A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem."


Cotação:

Nota: 9,5
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2 comentários:

Cristiano Contreiras disse...

Verdade seja dita, seu texto funciona muito mais que o próprio filme. Concordo que é interessante, mas no geral torna-se frágil e até mediano - bem verdade, caminhamos com a personagem de Lawrence que, de fato, tem uma atuação magistral. Mas, acho que o roteiro e até a direção não consegue trazer os personagens tão próximos de nós. Não é por conta da tal "alma" fria, é limitação mesmo da construção do estudo dos personagens ali...o filme, por vezes, parece não sair do mesmo lugar e somente o talento perfeito de Lawrence consegue provocar alguma atração com o que vemos.

Acho que a direção de Granik é muito, muito, correta...poderia ter ousado mais, acentuado mais, sei lá...não vejo esse grande filme como muitos acham, nem mesmo acho o desfecho 'chocante' alguns comentaram. Na verdade, o final poderia ser mais delineado...e discordo da indicação ao Oscar de Hawkes e filme. Quem deveria ter sido indicado, no lugar dele, é Andrew Garfield por "A Rede Social". E "Blue Valentine" é um filme mais denso e instigante que este, ao meu ver. Este sim poderia ter recebido a indicação de Filme...

Bom, fico feliz em ver como Lawrence tem tido o reconhecimento, afinal é uma bela atriz. Gosto dela no "Vidas que se cruzam", conhece? Recomendo.

Abração!

Fábio Henrique Carmo disse...

Cristiano,

Eu vejo este como um grande filme, sim. Aliás, foi um filme que foi crescendo em minha memória e não são muitos os longas que conseguem esse resultado em mim. Gostei muito do John Hawks e concordo que Andrew Garfield deveria ter sido indicado, mas não na vaga de Hawks e sim na de Jeremy Renner.

Nunca vi "Vidas Que Se Cruzam". Obrigado pela dica!Abraço!