sexta-feira, 15 de abril de 2011

Para Ver em Um Dia de Chuva

Orfeu Negro


Entre a poesia e o exotismo



Ao longo dos anos, “Orfeu Negro” vem sendo alvo tanto de admiração por boa parte de críticos e cinéfilos ao redor do mundo, quanto de severos ataques em terras brasileiras. Dirigido por Marcel Camus e lançado em 1959, recendo a Palma de Ouro no Festival de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro (que servem até como exemplo de sua repercussão extremamente positiva no meio internacional), o longa-metragem franco-ítalo-brasileiro apresenta, curiosamente, características que podem dar razão aos dois lados da moeda.

Adaptado da peça “Orfeu da Conceição”, escrita por Vinícius de Moraes, a narrativa transpõe o mito grego de Orfeu e Eurídice para os morros do Rio de Janeiro, procurando realçar os elementos da cultura brasileira. O roteiro nos apresenta o Orfeu brasileiro (interpretado pelo também jogador de futebol Breno Mello) como um condutor de bondes que mora no morro da Babilônia. Seu talento musical incomum possui fama nas redondezas e muitos dizem que ele é capaz de fazer o sol se levantar ao tocar seu violão. Prima de uma de suas vizinhas, a recatada Eurídice (a norte-americana Marpessa Dawn) vem do interior para passar os dias da festa de Momo na casa de sua parenta. Os dois vivem, então, de maneira meteórica, uma paixão de contornos trágicos.

Convém sublinhar, antes de tudo, que se trata de um olhar estrangeiro sobre a nossa cultura, o que necessariamente trará uma perspectiva diferente da que temos de nós mesmos. Natural, por conseguinte, que muito do que é mostrado seja visto como estereotipado pelos brasileiros. O que, ao menos em parte, é verdade. Ao escolher o carnaval como época do ano para a transposição do mito, transmite-se a ideia de que o Brasil vive em uma eterna festa, principalmente quando se atenta para o fato de que praticamente durante toda a projeção há sempre um batuque de samba ao fundo e gente dançando quase sem parar. A percepção de Camus se avizinha, em uma observação mais detida, da visão romântica do “bom selvagem”. Ou seja, ele parece ver os moradores do morro como pessoas de bom coração, felizes por terem o samba no pé e a bela paisagem do Rio de Janeiro para admirar, apesar de sua considerável pobreza material. Ingenuidade talvez seja a melhor palavra para descrever tal perspectiva e ela foi em muito responsável pelos ataques que o filme sofreu por parte da intelectualidade brasileira, a qual acusava também Camus de fugir deliberadamente das críticas e observações sociais presentes na obra dramática de Vinícius. “Orfeu Negro” se apresentaria, por conseguinte, como uma obra inautêntica, tanto por fugir da realidade do povo do Rio de Janeiro, quanto por se distanciar em demasia da matéria-prima que lhe deu origem. Até mesmo Jean-Luc Godard apontou esta inautenticidade em um dos seus escritos na famosa “Cahiérs Du Cinema”, afirmando que o filme possuía um “exotismo cartão-postal”. Décadas depois, o hoje presidente dos Estados Unidos Barack Obama também denunciou este aspecto ao mencionar, em sua autobiografia, que sua mãe, Ann Dunhan, se apaixonou por seu pai, um queniano estudante nos EUA, pouco depois de assistir a “Orfeu Negro” (mostrando que a mesma, provavelmente, passara a ter uma visão romântica e idealizada sobre o Brasil e os brasileiros e, por extensão, sobre a África).



Por outro lado, não se pode negar que, a despeito de sua inautenticidade, o longa-metragem possui momentos de admirável beleza. Seu início mostra uma pipa erguida por um garoto no alto do morro, cena esta sublinhada por “A Felicidade”, canção icônica da Bossa Nova (de autoria de Tom Jobim e Vinícius de Moraes) cujos versos mencionam que a felicidade “é como uma pluma que o vento vai levando pelo ar”, pluma esta que, para manter-se voando, “precisa que haja vento sem parar”. Uma metáfora perfeita da alegria que teriam Orfeu e Eurídice durante os poucos dias do Carnaval. A festa, por si só, momento de euforia de toda uma nação, já é posta como representação do efêmero. A “grande ilusão” que acaba na quarta-feira. Ademais, não se pode negar a ousadia de Camus em utilizar, ainda nos 50, um elenco quase inteiramente negro na produção. Contudo, muitos ainda criticam o filme mesmo em tais aspectos, argumentando que a poesia viria de Vinícius de Moraes e não de Marcel Camus ou do roteirista Jacques Viot (em parceria com o próprio Camus). Esta, todavia, é uma crítica que beira o sofisma, já que, desta forma, seríamos levados a enxergar com maus olhos toda película com origem na literatura, pois que suas virtudes passariam inevitavelmente pelos méritos do escritor.

Adentrando em questões mais técnicas, é importante frisar a qualidade da fotografia de Jean Bourgoin, muito embora se saiba que filmar o Rio de Janeiro é muito fácil. Já as interpretações oscilam constantemente. Herdeiro do neo-realismo, Camus usou vários amadores nas filmagens e o resultado é marcadamente inconstante. A começar pelo próprio protagonista, Breno Mello. Este foi seu primeiro trabalho cinematográfico, migrando do futebol para a arte interpretativa, o que naturalmente gera limitações no seu desempenho. Marpessa Dawn, uma atriz profissional, se sai melhor, obviamente, mas quem acaba roubando a cena é o elenco infantil, com suas crianças simpáticas e cheias de samba no pé (curiosidade: o intérprete da Morte que persegue Eurídice é o bi-campeão olímpico Adhemar Ferreira da Silva). A trilha sonora, então, pode ser considerada uma história à parte. Permeada pelas canções de Antônio Carlos Jobim, Vinícius de Moraes, Luiz Bonfá (é dele a belíssima “Manhã de Carnaval) e Antônio Maria, o filme serviu de trampolim internacional para a Bossa Nova, sendo um dos responsáveis pelo sucesso global que o gênero alcançou.

Constituindo ou não um clássico da “macumba para turistas”, “Orfeu Negro” meio que se tornou um filme obrigatório para os cinéfilos brasileiros, sendo importante salientar que ele, de certa forma, abriu terreno para que o excelente “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, viesse a ser premiado em Cannes alguns anos depois. Faz-se interessante até mesmo contrapô-lo ao recente “Rio”, outra produção que está destinada a ser vista ao longo dos anos vindouros como mais um exemplo do “exotismo cartão-postal” denunciado por Godard, só que aqui dirigido por um brasileiro a serviço de Hollywood. De qualquer forma, em ambos os casos os resultados são palatáveis ao grande público. Dois bons filmes cujos méritos acabam sendo ofuscados por nosso complexo de inferioridade (ou de “vira-latas”, como batizado por Nelson Rodrigues), o qual não permite qualquer perspectiva que nos aproxime de possíveis estereótipos. Curiosamente, Camus jamais viria a obter o mesmo respeito e sucesso com seus trabalhos posteriores. Será que algum brasileiro irritado fez alguma macumba para amaldiçoar o pobre diretor? Acredito que o cineasta não mereceria isso. O máximo de que ele pode realmente ser acusado é de não ter entendido a nossa cultura.

Cotação:

Nota: 8,0
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