quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Missão Impossível - Protocolo Fantasma


Vale o ingresso e a pipoca


Esta produção marca a migração do diretor Brad Bird, de animações como “Os Incríveis” e “Ratatouille”, para o mundo live-action e a verdade é que acabou sendo bem-sucedida, muito embora inegavelmente ainda tenha vários aspectos a melhorar. Talvez o mais importante deles seja o cuidado com o desenvolvimento do roteiro (escrito por André Nemec e Josh Appelbaum) um tanto esfarrapado, com um vilão mal trabalhado e cheio de situações forçadas para gerar sequências de ação. E aqui apontamos o ponto mais positivo do longa-metragem: estas sequências aventureiras são realmente de tirar o fôlego do espectador, compensando em muito o preço do ingresso para a sala escura.

Na trama, Ethan Hunt (Tom Cruise, também produtor e parecendo que saiu de um tanque de formol) acaba de concluir uma missão onde esteve enclausurado em um presídio russo para já engatar uma outra aventura: roubar códigos de ativação de armas nucleares escondidos a sete chaves no Kremlin para evitar que os mesmos caiam nas mão de um terrorista que pretende causar uma hecatombe nuclear. Todavia, a empreitada acaba mal para os agentes da IMF (Impossible Missions Force), a qual acaba sendo vista pelo governo americano como responsável por uma enorme explosão em Moscou (uma das cenas mais marcantes do longa, diga-se de passagem). É então que é colocado em prática o tal “protocolo fantasma” do título, desativando a força especial e desautorizando todas as suas ações, fazendo com que Ethan e seus companheiros Benji (Simon Pegg, divertidíssimo), Jane (Paula Patton) e Brandt (Jeremy Renner) tenham de agir por conta própria e com poucos recursos para tentar salvar o mundo da guerra nuclear definitiva.

Talvez a maior inovação que Bird inseriu na franquia seja o leve tom cômico que estava ausente nos outros episódios. E isso sem exageros, sabendo brincar com as próprias nuances e características da série (como a mensagem que explode depois de alguns segundos), mas sem cair no ridículo. Além disso, pegou do terceiro título a humanização dos personagens, os quais têm uma vida que vai além da espionagem. Há uma ligação muito importante entre Ethan e Brandt que diz respeito à esposa do primeiro (interpretada no terceiro filme por Michelle Monaghan) e mais não digo para não revelar demais para quem ainda não assistiu. É bom salientar ainda, nessa linha, que Bird e os roteiristas evitaram o romance fácil que poderia surgir entre Ethan e Jane, fugindo assim de um dos grandes clichês dos filmes de ação. Não se pode negar, ademais, que a química estabelecida entre os quatro integrantes do grupo foi a melhor dentre todos os episódios e acredito até que ela será repetida em futuras edições, muito embora a performance dos atores seja oscilante, principalmente Paula Patton, bastante canastrona em diversos momentos, a despeito de sua beleza. Nesse aspecto, vale dizer que Cruise faz o Ethan de sempre (mas agora com menos sorrisos colgate) e é impressionante notar como ele se mantém jovem e atlético mesmo à beira dos 50 anos, dispensando dublês na maioria das cenas de ação. Jeremy Renner tem boa presença e atuação correta, mas quem rouba mesmo a cena é o britânico Simon Pegg com o seu Benji, sempre chamando a atenção com as melhores tiradas e frases quase sempre que aparece. Por outro lado, o vilão Hendricks (Michael Nyqvist) é mesmo o grande ponto fraco da trama, com uma caracterização pífia e motivações nada convincentes (um tique negativo da maioria dos filmes de James Bond, por sinal). Ademais, como já salientado mais acima, algumas situações se mostram cheias de furos e percebemos que elas estão ali apenas para gerar sequências agitadas.

Mas estas últimas são mesmo o grande ponto alto do longa. Variando por cenários que vão de Moscou a Dubai, passando de Bombaim a Budapeste, as cenas de ação são extremamente bem dirigidas e impactantes, com edição limpa que permite que entendamos tudo que se vê na tela (Michael Bay, quando você irá aprender essa lição?), valendo destaque para as que se passam em Dubai, principalmente a escalada do edifício Burj Khalifa (o mais alto do mundo) e a tempestade de areia nas ruas da cidade (o que não deve ajudar muito no turismo dela, é bom dizer). Fico imaginando como seria vê-las em uma sala IMAX,já que a tecnologia de filmagem foi apropriada para a exibição nas telas gigantes. Com certeza, resultarão ainda mais espetaculares. Some-se a isso uma trilha sonora competente (de Michael Giacchino) que soube aproveitar muito bem o clássico tema da franquia, além de colocar músicas com nuances apropriadas para cada localidade onde o grupo se encontra.

Embora não se possa considerar este o melhor filme da série (considero o primeiro, de Brian De Palma, ainda superior) e escorregue em alguns clichês do gênero (mesmo evitando outros), "Missão Impossível - Protocolo Fantasma" não deixa muito a desejar e tem tudo para alavancar a combalida carreira do astro Cruise, bastante errática desde que teve alguns “surtos” diante das câmeras de TV. Está indo muito bem de bilheteria, tanto nos EUA quanto internacionalmente, e deverá gerar um já quase inevitável 5º episódio. Também se mostrou muito proveitoso como estreia de Brad Bird na direção de atores, deixando o conforto em que se encontrava com suas ótimas animações. Mesmo que ainda precise evoluir (e é perfeitamente natural) ele já mostrou a que veio, entregando um longa que tem tudo pare agradar o público-pipoca dos fins de semana (eu mesmo consumi um bocado de pipoca durante a sessão). Dentro da atual crise de criatividade de Hollywood, com suas cada vez mais exaustivas continuações e remakes, levar o espectador a roer as unhas e jamais se cansar diante de 2h13min de projeção já é um feito e tanto.

Cotação:

Nota: 8,0

Obs: Este é o último post de 2011. Mais uma vez aproveito para desejar um feliz ano novo para todos! Que seja um ano de muitas realizações! Até 2012!

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Os 7 melhores filmes de 2011

Bem, chegamos à última semana de 2011 e o Cinema Com Pimenta apresenta a sua lista (como sempre de 7 itens) com os melhores filmes exibidos no circuito comercial brasileiro no ano. Costumamos sempre dizer que o ano foi fraco, mas acredito que tais afirmações acabam sendo revisadas no futuro. Em outras décadas, tidas como "douradas", a impressão era a mesma. O tempo é o melhor juiz para a arte. Bem, vamos à lista:




Então, é isso. Listas são inúteis, mas não há como deixar de fazê-las. Um feliz 2012 para todos vocês! Grande abraço e até a próxima!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Curtindo o Curta #2


O conto de Charles Dickens "A Christmas Carol" já foi adaptado para a tela várias vezes, como em "Os Fantasmas de Scrooge" (2009), animação em 3D dirigida por Robert Zemeckis. No entanto, a mais antiga lembrança que tenho desta bela estória natalina se deve ao curta de animação "Um Conto de Natal do Mickey" (Mickey's Christmas Carol), realizado pelos estúdios Disney em 1983 e sempre reprisado pela Rede Globo na época em que lembramos o nascimento de Cristo (ao menos no meu tempo de criança era uma atração certa na programação de fim de ano). Nele, Ebenezer Scrooge, o velho ranzinza e mesquinho que não compreende sentimentos como amor e solidariedade, está na pele do Tio Patinhas, enquanto o seu empregado oprimido e mal tratado é vivido por Mickey. Scrooge receberá a visita de três espíritos na noite de Natal que o procurarão mudar a sua visão de mundo. Abaixo, segue o curta (que foi inclusive indicado ao Oscar como melhor curta de animação) dividido em 3 videos (são 25 minutos ao todo). Esta é a forma do "Cinema Com Pimenta" desejar um feliz Natal para todos, repleto de paz e harmonia, mesmo para aqueles que eventualmente não acreditem em Jesus Cristo. Que Deus abençoe a todos!






quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Filmes Para Ver Antes de Morrer


A Estrada da Vida
(La Strada, 1954)

A flor entre as rochas


É difícil falar de um filme como “A Estrada da Vida” (La Strada, 1954), uma das mais queridas obras de um do mais amados diretores do cinema, o genial Federico Fellini. A missão é espinhosa justamente porque muito já foi dito e escrito sobre esta película. O risco de cair no lugar-comum é enorme e creio que acabarei sendo levado a isso, mas não vou me furtar mais uma vez a tentar transmitir a grande admiração que tenho por este filme simples, direto, mas ao mesmo tempo extremamente emocionante. Afinal, é difícil não se sensibilizar com a estória de solidão de Gelsomina (Giulietta Masina, esposa de Fellini) e Zampanò (um soberbo Anthony Quinn), dois artistas mambembes que levam uma vida errante, marcada pela incompreensão mútua em uma relação onde ambos se colocam nos extremos entre a doçura e a brutalidade. O filme também dá início à transição de Fellini do neo-realismo, movimento no qual despontou como roteirista, para um estilo próprio e único que faria a sua reputação mundial.

Zampanò é um tipo de saltimbanco que sobrevive desempenhando um número banal onde quebra uma corrente com a força do seu tórax (ele foi inspirado em um açougueiro brutamontes de Rimini, cidade natal do cineasta). Precisando de uma ajudante, ele compra Gelsomina de uma família miserável, cuja mãe não tem mais de onde tirar o sustento para as filhas mais novas. Porém, Gelsomina ainda é uma criança em espírito e se submete à tal humilhação, mesmo depois que Zampano demonstra todo a sua brutalidade, tratando-a muitas vezes como uma verdadeira escrava ou um objeto. E os dois seguem pelas estradas da Itália, na sua paisagem miserável do pós-guerra, até se juntarem a um circo onde o equilibrista “Il Matto” (Richard Basehart, também ótimo), desperta a atenção de Gelsomina e faz nascer um mal disfarçado ciúme em Zampanò, incapaz de admitir ou mesmo compreender os seus sentimentos para com ela. “Il Matto”, dotado de grande conhecimento da vida por trás de sua faceta de gozador, ao mesmo tempo em que encanta Gelsomina, estimulado-a a ter uma vida livre, debocha o tempo inteiro do comportamento rude e bruto de Zampanò, o que acaba levando este a atitudes que culminarão em uma tragédia que afetará a vida de todos.

É certo que há em “La Strada” muito de road-movie, tanto no aspecto formal quanto substancial. Inteiramente filmado em locações (como era típico dos filmes neo-realistas), o cenário maior do filme, como já mencionado, é a Itália pobre que ainda busca se reerguer do pesadelo da guerra. Ou seja, o longa também pode ser visto como o retrato de um país que ressurge das cinzas, onde os indivíduos tentam sobreviver da forma que conseguem. Todos os personagens do filme parecem, antes de tudo, ser artistas da sobrevivência. Essa visão ganha ainda mais força ao lembrarmos como surgiu a ideia para a realização do longa-metragem, atribuída a Tullio Pinelli (co-escritor do roteiro ao lado de Ennio Flaiano e do próprio Fellini), o qual teria visto uma casal de mambembes empurrando uma espécie de carroça ao longo de uma viagem e pensou em um enredo baseado nessa cena. Mas é óbvio que Fellini não se resumiria tão somente a pintar um painel da Itália do seu tempo. Ele aproveita a oportunidade para questionar o que levam solitários a serem solitários ou se tal circunstância vai muito além do aspecto volitivo. A frágil e terna Gelsomina é uma solitária justamente devido à sua enorme doçura, incapaz de reagir com a dureza que a vida exige em alguns momentos. Sente-se uma inútil, acreditando que Zampanò não gosta dela porque não sabe cozinhar ou fazer algo que o agrade. Este último, por sua vez, reage com tanta brutalidade diante das dificuldades que se tornou incapaz de demonstrar afeto por alguém, acabando por espantar todos à sua volta. Ou seja, A solidão para Gelsomina é uma circunstância imposta pelo mundo e em que vive, enquanto para Zampanò acaba sendo muito mais consequência de sua atitudes.

Personagens tão ricos e complexos exigiriam intérpretes à altura e o que vemos na tela é impressionante. Giulietta Masina torna simplesmente inesquecível sua personagem, mostrando-nos toda a carência da mesma, assim como sua forma particular de entender o mundo. Inspirando-se em Chaplin, ela empresta de Carlitos a sua ternura e trejeitos (mas não a sua esperteza) e é certo que Masina tomou emprestado do cinema mudo a primorosa expressão facial e corporal, dispensando palavras para traduzir os sentimentos da personagem. Sua presença cênica é tão forte e sua incorporação tão profunda que acabou por afetar sua carreira daí em diante (algo como o Jack Torrance de “O Iluminado” para a carreira de Jack Nicholson, que parece ter ficado meio sequelado depois dele, levando seus tiques para outros personagens). Da mesma forma, Anthony Quinn nos brinda com um de seus papeis mais destacados. É muito raro interpretar um tipo como Zampanò sem cair na caricatura, mas ele consegue e, apesar de sua brutalidade, conseguimos sentir pena do mesmo na famosa e triste sequência final. Já Richard Basehart nos entrega uma equilibrista saborosamente maluco, provocador e, por que não, também cheio de sabedoria. A cena em que ele explica a Gelsomina que até uma mera pedrinha tem a sua importância é simplesmente emocionante e memorável, uma peça de arte em estado puro. E, claro, além de interpretações tão marcantes ainda temos a trilha inesquecível do mestre Nino Rotta, tocada ao longo do filme por Gelsomina com seu trompete, uma das mais inspiradas da longa parceria do compositor com o diretor.

Premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro, foi com “A Estrada da Vida” que Fellini adquiriu respeito internacional e, principalmente, começou a operar sua magia, transformando a dura realidade em algo poético, mas sem jamais desdenhar do sofrimento dos seus personagens. Aliás, Federico foi um dos cineastas que mais respeitaram o ser humano, tendo consciência de que o mais rude dos homens também possui uma enorme capacidade de amar. Esta, inclusive, talvez seja a perfeita tradução da narrativa em “La Strada”, a de que o amor pode nascer mesmo nos ambientes mais áridos e dentro dos corações mais duros, como uma flor que nasce entre as rochas.


Cotação e nota: Obra-prima.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Dica de Livro


Se você deseja presentear um cinéfilo neste Natal, uma ótima pedida é o livro "Tudo Sobre Cinema", que tem como organizador o crítico e historiador de cinema Philip Kemp. Embora trate em específico de uma quantidade menor de filmes que o famoso "1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer", traz como diferencial uma análise sobre os diversos movimentos e estilos que nasceram ao longo de mais de 100 anos de história do cinema, com textos sobre a Nouvelle Vague, o Expressionismo Alemão, a Nova Hollywood, cinema soviético, entre outros. Além disso, os filmes analisados contam com quadros detalhados onde são resumidas as cenas mais marcantes, além de uma ampla gama de imagens que vão deixar qualquer aficcionado babando (tem foto até dos irmãos Lumiére). Agradável e didático, contando com a qualidade gráfica sempre impecável da Editora Sextante, "Tudo Sobre Cinema" já pode ser colocado como obrigatório na estante dos amantes da Sétima Arte. Ah, e vale também para o cinéfilo que deseja se auto-presentear. No meu caso, já fui presenteado pela minha noiva. :=) Boa leitura!

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Kirk Douglas: 95 anos!


É isso aí! Hoje, um dos maiores astros do cinema em todos os tempos, Kirk Douglas, está completando 95 anos de uma vida repleta de grandes sucessos cinematográficos, prolífica (participou de 95 produções ao todo) e também, como todos nós, repleta de desafios, tendo superado um derrame cerebral e até escrito um livro sobre essa sua vivência. O pai de Michael Douglas sempre foi incansável, construindo uma das mais sólidas carreiras já vistas. Protagonizou obras como "Glória Feita de Sangue" (filme que levou Stanley Kubrick a ser reconhecido como um grande diretor), "Spartacus" (quando brigou com o mesmo Kubrick, mas é um filmaço!), "A Montanha dos Sete Abutres" (de Billy Wilder) e "Assim Estava Escrito" (de Vincent Minelli). Ainda precisaria de mais?

Parabéns, vovô Kirk, firme e forte no caminho dos 100 anos!

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Filmes Para Ver Antes de Morrer


O Anjo Exterminador
(El Ángel Exterminador, 1962)


Luís Buñuel e a invenção do Big Brother



Muitos atribuem ao livro “1984”, de George Orwell, a grande inspiração para a criação do famigerado programa televisivo “Big Brother”, amado por muitos e odiado por outros tantos, e é verdade que o nome da atração foi retirada da citada obra ficcional. Entretanto, o seu formato, colocando os participantes confinados em uma casa, obrigados a conviver com outras pessoas, por vezes bastante distintas em personalidade (muito embora todas tenham em comum o fato de gostar de se expor), remete com maior propriedade a “O Anjo Exterminador” (El Ángel Exterminador, 1962), filme que constitui uma das obras máximas do cineasta espanhol Luís Buñuel, certamente o maior nome do Surrealismo cinematográfico e um dos mais ferozes críticos da classe burguesa. Afinal, neste longa-metragem extremamente original, último fruto de sua fase mexicana (iniciada após a sua saída da Espanha, com a guerra civil nos anos 30), vemos um grupo de burgueses confinados em um casarão logo após um jantar de gala, realizado a convite do proprietário. O mais curioso é que não se sabe o porquê desta imobilidade. Não há sequer uma porta trancada no imóvel e o grupo simplesmente se resigna a passar horas, dias e semanas restritos àquele ambiente, situação que os leva à animalização do comportamento, caindo todas as máscaras condicionadas pela moral burguesa.

Na realidade, talvez o porquê da situação sui generis nem seja exatamente importante. O próprio Buñuel chegou a afirmar, em uma entrevista, que o filme seria uma espécie de estudo sobre a natureza da vontade, procurando analisar o que leva uma pessoa a realizar atividades prosaicas como andar, rir ou mexer um braço. No entanto, a síntese oferecida pelo diretor esconde sua intenção de dissecar os costumes e artificialidades burguesas. Em verdade, Buñuel desfere um tiro certeiro na apatia e futilidade de uma classe ociosa e distante da realidade. Não por acaso, no desenrolar do roteiro (escrito pelo próprio diretor), os empregados da mansão sentem um desejo irrefreável e inexplicado de deixá-la imediatamente, como se soubessem que algo de muito ruim estivesse para acontecer ali. O único dentre estes que permanece é o mordomo, justamente aquele mais adaptado e inserido no modo de vida da outra classe, um tipo de “bruto domesticado”. Da mesma maneira, os únicos presentes ao jantar que são poupados do “martírio” se resumem a um idoso que vê com olhos críticos o evento e um casal de apaixonados que, apesar de tudo, se colocam acima dos demais por terem a capacidade de nutrir amor. Ou seja, Buñuel reserva sua tortura psicológica apenas àqueles contaminados pela moral burguesa.


O longa se inicia com uma espécie de apresentação dos personagens, recurso semelhante aos usados em filmes de tragédias ou aeroportos, onde são mostrados os integrantes da fauna social que vivenciará a narrativa. É nessa primeira parte que percebemos a superficialidade daquelas pessoas, como na fala marcante da personagem que diz que ficou mais consternada ao ver um príncipe morto do que diante de uma tragédia onde viu várias pessoas esmagadas por um trem, alegando para tanto que “os pobres sentem menos dor”. A anfitriã, por seu turno, possui um urso de estimação, algo totalmente non sense, mas que certamente denota uma pontada nas excentricidades que costumam povoar o comportamento de classes mais abastadas, pois que carentes de objetivos maiores na vida. Outra personagem marcante é a de Valquíria (papel da famosa atriz mexicana Silvia Pinal, que já havia trabalhado com Buñuel em “Viridiana”), que todos afirmam ainda ser virgem, mas desconfiam da veracidade dessa condição. Descobrimos, também, que o adultério é uma constante no comportamento do grupo, assim como a inveja e a desfaçatez, vícios humanos que ficam cada vez mais expostos à medida que o tempo passa. Com a angústia crescente no ambiente, atitudes tipicamente humanas afloram, como procurar um culpado para a situação, o que acaba sobrando para o anfitrião, justa e ironicamente um dos mais lúcidos e bem intencionados do grupo. E eis que a situação dos “aprisionados” começa a despertar a atenção dos moradores da cidade, o que nos remete mais uma vez ao citado programa televisivo. Uma multidão se aglomera pelas redondezas e começa a tentar acompanhar e saber os passos dos convidados, mas em nenhum momento a polícia chega a invadir o local para “salvá-los”, aguardando passivamente que eles resolvam sair.


Todas essas circunstâncias narrativas são mostradas com o tradicional poderio imagético de Buñuel, neste aspecto, até por ser herdeiro da tradição surrealista, um dos cineastas mais criativos em todos os tempos. A cena em que os convidados quebram as paredes em busca das tubulações de água para matar a sede é de uma mistura de drama e comédia que só poderia ter partido de uma mente genial. Ademais, Buñuel mais uma vez pontua a narrativa com imagens surreais que representam os pesadelos dos confinados, quase todos já no limite entre lucidez e insanidade, algo que nos remete ao “Ensaio Sobre A Cegueira” de Saramgo/Meirelles, ou, mais ainda, a Franz Kafka com suas ideias de situações limítrofes e inexplicáveis. Embora não seja este o filme em que Buñuel mais acentua sua veia anticlerical – este posto cabe ao mencionado “Viridiana”, seu filme imediatamente anterior (1961) – ele reserva para o desfecho as suas ferroadas na Igreja, mas este ponto fica para você realizar sua própria apreciação quando tiver a oportunidade de ver o longa.

O cineasta repetiria um mote semelhante em “O Discreto Charme da Burguesia” (Le Charme Discret de La Bourgeoisie, 1972), filme posterior de sua fase francesa, mas este “O Anjo Exterminador” é, de certa forma, mais acessível aos não iniciados na sua filmografia e, certamente, mais original. Luís Buñuel se revela, mais do que nunca, um profundo conhecedor das limitações humanas, além de se mostrar algo profético ao conceber a situação de seres humanos confinados em um ambiente por vontade própria (ou falta dela). Se estivesse vivo para acompanhar o sucesso dos reallity shows, é provável que ele desse boas risadas e ficasse envaidecido ao constatar que ele possuía inteira razão nas conclusões que tirou a partir de seu exercício criativo. Hoje, o Big Brother é a tradução moderna e rasteira desta obra singular do mestre espanhol, mas, claro, sem a arte desta.


Cotação:

Nota: 10,0

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Curtindo o Curta #1


Há alguns dias, descobri um programa da Rede Brasil chamado “Curta TV”, dedicado à abordagem e exibição deste formato de cinema tão pouco visto hoje. O mais triste é que ele fica relegado ao esquecimento não apenas pelo grande público, mas até mesmo no meio cinéfilo, mostrando como o curta-metragem anda muito desprestigiado. Faço uma pergunta a você que acompanha este espaço: quantos curtas você viu este ano? Acredito que a resposta deverá resultar em um número que não passa dos dedos das mãos. Todavia, a verdade é que o curta-metragem representa, antes de tudo, o nascimento da Sétima Arte. Afinal, quando os irmãos Lumiére inventaram essa poderosa magia, eles obviamente não começaram produzindo filmes de 120 minutos. Foi pensando exatamente neste espaço escasso dado aos curtas, os quais, ademais, acabam sendo a escola de qualquer cineasta (seja um medíocre ou um gênio como Chaplin), que resolvi criar uma nova série aqui no “Cinema Com Pimenta”, a “Curtindo o Curta”, dedicada a exibir (claro que por meio destas ferramentas fantásticas que são o sites comoYoutube ou Dailymotion) relevantes curtas-metragens, sejam contemporâneos ou clássicos, como uma forma modesta de tentar suprir esta lacuna na bagagem cinéfila de muitos amantes do cinema (entre os quais eu me incluo).

O filme que escolhi para iniciar essa nova sessão do blog foi “Viagem à Lua” (Le Voyage Dans La Lune), uma obra de 1902 dirigida por um dos desbravadores da arte cinematográfica, Georges Méliès, um ex-ator e ilusionista que ousou fazer algo inteiramente distinto do que era realizado até então. A começar pela sua duração. Pode parecer curioso hoje, mas “Viagem À Lua”, com seus 14 minutos, foi um verdadeiro longa-metragem no seu tempo, pois que até então os filmes geralmente se limitavam a 2 ou 3 minutos de projeção. Entretanto, ainda mais inovadora foi a sua premissa. Ao adaptar o romance homônimo de Julio Verne para a tela, Méliès abriu as fronteiras da imaginação no alvorecer da arte cinematográfica, deixando de lado o cotidiano filmado que era a regra até então (ou seja, mini-documentários), para explorar um universo inteiramente ficcional, voltado única e exclusivamente ao entretenimento. Não é nem um pouco absurdo afirmar que Méliès foi o pai do gênero ficção-científica, estabelecendo as bases que seriam seguidas por praticamente todos os cineastas dali em diante, até mesmo por gênios como Stanley Kubrick, cuja obra máxima, “2001 – Uma Odisseia no Espaço” (2001 – A Space Odissey), não deixa de ser uma variante filosófica do filme de Méliès.

O roteiro, também escrito pelo próprio diretor, começa com um cientista tentando convencer seus colegas, em uma espécie de congresso, de que é possível viajar ao satélite da Terra por meio de uma nave com estrutura semelhante a de um míssil. Um grupo, então, empreende a aventura, aterrissando de maneira pitoresca no “olho” da Lua, que é caraterizada de modo antropomórfico (por sinal, uma das cenas mais conhecidas do cinema até hoje). Lá eles descobrem que a Lua é habitada pelos selenitas, sendo aprisionados por estes até o momento em que descobrem que os estranhos habitantes viram fumaça quando golpeados com guarda-chuvas. Conseguindo escapar, os aventureiros voltam à Terra e caem no mar, sendo resgatados e recebidos com festa em Paris. Diante de narrativa tão fantasiosa, Méliès, utilizando de seus prévios conhecimentos de ilusionismo, acabou por engendrar o que hoje denominamos de efeitos especiais ou visuais, além de usar técnicas de superposição, fusão e edição de imagens que seriam fundamentais no desenvolvimento da Sétima Arte. Além disso, trata-se da primeira adaptação de uma obra literária para a película, o início de uma parceria entre cinema e literatura que renderia muitos grandes frutos ao longo de décadas. No mais, Méliès parece realizar uma grande zombaria com o cientificismo reinante na época, caricaturando a fé na ciência que por vezes se assemelha à fé religiosa, ocorrendo apenas uma substituição, ao mesmo tempo em que demonstra que a humanidade nunca terá pleno conhecimento sobre os mistérios da natureza e do universo.

Tremendo sucesso em sua época, ironicamente Méliès acabou indo à falência algum tempo depois, principalmente porque o filme foi distribuído nos EUA à revelia do seu autor, o qual não recebeu um centavo das bilheterias ianques. De qualquer forma, sua obra resultou precursora e muitos aspectos, o que acaba por transformá-la em obrigatória para qualquer pessoa que procure se aprofundar um pouco mais na arte da imagem em movimento. Bem, vamos deixar de falação e passarmos ao filme. A versão mais completa que encontrei na rede, e que segue abaixo, nos fornece 12 minutos de projeção, o que é praticamente o filme inteiro. Bom filme nesta primeira sessão do “Curtindo o Curta”.



Le Voyage dans la Lune (Uni Music) - 1902... por Krasny-Kofe