quinta-feira, 8 de março de 2012

Filmes Para Ver Antes de Morrer


A Moça Com A Valise
(La Ragazza Con La Valigia, 1961)


Uma diva, um adolescente e um grande cineasta



Você conhece a obra do diretor italiano Valerio Zurlini? Bem, se a resposta for negativa, não se sinta culpado (a). Zurlini foi um diretor talentosíssimo, mas que teve ao mesmo tempo a sorte e o azar de participar de um momento importantíssimo de efervescência do cinema italiano, disputando espaço com outros nomes como Federico Fellini, Luchino Visconti ou Michelangelo Antonioni. Ou seja, diante da concorrência destes popstars da direção, a filmografia de Zurlini acabou meio que passando despercebida, mesmo que tivesse, tal como a dos nomes citados, uma qualidade diferenciada. Outro fator que certamente contribuiu para o relativo esquecimento de sua obra foi seu temperamento difícil e rigoroso, o que fazia com que ele não tivesse muito trânsito no meio, redundando em dificuldades para realizar seus projetos. Um exemplo disso foi o aclamado “O Jardim dos Finzi-Contini” (Il Giardino dei Finzi-Contini, 1970), um projeto inicialmente de Zurlini, mas que ele acabou passando para Vittorio De Sica, exatamente porque o primeiro não estava encontrando meios de filmá-lo. Tal circunstância também se deveu, consideravelmente, à crítica italiana, a qual não recebia com os devidos méritos os trabalhos de diretor, talvez por estar influenciada excessivamente pela Nouvelle Vague e seus conceitos de ruptura, algo que não era a proposta do cinema de Zurlini. Essa baixa recepção da crítica fazia com que os produtores italianos não se interessassem pelos seus projetos e a verdade é que nos seis últimos anos de vida ele não conseguiu rodar um filme sequer. Mas há um aspecto na obra deste cineasta que talvez tenha passado desapercebido dos críticos de então e que era sua principal comunhão com a Nouvelle Vague. Zurlini foi, antes de tudo, um autor. Seus longas estão impregnados de marcas pessoais, detentores inclusive de passagens de teor autobiográfico, como é o caso de “A Moça Com A Valise” (La Ragazza Con La Valigia), seu longa de 1961 protagonizado por uma Claudia Cardinale no auge da beleza, além do jovem Jacques Perrin.

Vendo hoje esta obra peculiar, é inevitável perceber o quanto os críticos podem ser dotados de uma acentuada miopia. “La Ragazza Con La Valigia” é um filme de extrema sensibilidade e sutilezas, com uma construção apurada dos personagens que temos o prazer de ir descobrindo ao longo de suas duas horas de projeção. Na trama, conhecemos, logo na primeira sequência, a cantora de restaurantes e cabarés Aída Zepponi (Cardinale), uma mulher extremamente bela mas, até certo ponto, ingênua, sendo engada pelo playboy Marcelo Fainardi que a abandona em uma oficina de beira de estrada. Contudo, o local é próximo da cidade onde vivem os Fainardi e Aída consegue chegar à mansão destes. Lá, ela conhece Lorenzo (Perrin), um adolescente de 16 anos que irá enxergar nela sua primeira paixão. A tentativa de viver esse sentimento será para ele um rito de passagem, já que com o amor virão as inevitáveis desilusões e o consequente amadurecimento.


Esta temática da chegada da maturidade já havia sido abordada por Zurlini em seu longa anterior, “Verão Violento” (Estate Violenta, 1959), onde um jovem também se apaixona por uma mulher mais velha, mas é aqui que ele encontra a forma perfeita de externar as inquietudes, aspirações e intensidade desta fase da vida. Ademais, a construção da persona de Aída é algo que chega mesmo ao brilhantismo. Apesar de, em alguns momentos, podermos perceber que ela pode estar usando o jovem Lorenzo em benefício próprio, o diretor jamais induz o espectador a julgamentos fáceis, pois que também é perceptível que Aída é, antes de tudo, uma sobrevivente, uma mulher que não consegue escapar de uma prostituição velada diante das imposições e submissões de uma sociedade machista. Um comentário de caráter social bem de acordo com as posições políticas do diretor, membro do Partido Comunista italiano (como era, em geral, a maioria dos diretores da Itália). É interessante observar que todos os homens da narrativa enxergam em Aída apenas um corpo, uma fonte de prazer. Lorenzo é o único que escapa desta visão e que consegue enxergar na cantora um ser humano, uma mulher com seus sonhos, personalidade, necessidades e fraquezas. Ela percebe que Lorenzo é diferente dos outros e por isso não consegue se desligar dele, muito embora seu sentimento pelo garoto seja ambíguo, não exatamente carnal. Trata-se de um quase platonismo recíproco.

Realçando a profundidade e beleza da narrativa, temos uma força imagética peculiar. Zurlini filmava como poucos, sabendo encontrar sempre o melhor ângulo para cada sequência, valorizando tanto a beleza da atriz como a expressividade de Perrin. Algumas de suas composições cênicas são mesmo primorosas, como a memorável cena em que Aída desce a escadaria da sala dos Fainardi ao som da ópera homônima colocada na radiola por Lorenzo, resultando em um momento visual simplesmente inesquecível. Aliás, a utilização de uma trilha sonora que vai da ópera à música pop italiana é um dos pontos altos do trabalho de Zurlini, sabendo adequar à perfeição canção e imagem, como na sequência linda e também memorável em que Lorenzo, corroído de ciúmes, assiste a Aída dançar com um indivíduo boçal enquanto ele fica de lado. Este tipo de associação entre música e imagem seria mais tarde usado por muitos diretores, de Martin Scorsese a Quentin Tarantino. Adicione-se a isso a belíssima fotografia em preto e branco de Tino Santoni e temos um filme que se coloca como uma coleção de imagens realmente difícil de ser imitada.


Valorizando ainda mais o longa, temos a ótima atuação de Jacques Perrin e a grande presença da diva Claudia Cardinale. Ela ainda não havia se firmado como uma estrela na época e foi por força do produtor (que depois seria também seu marido) Franco Cristaldi que ela acabou ganhando o papel no filme. O problema de Claudia até então, o que possivelmente contribuía para ela não se firmar, era a sua voz um tanto rouca, fazendo com que ela fosse dublada (uma estratégia meio cretina dos estúdios naqueles tempos) e aqui não foi diferente (o primeiro filme em que se usou a sua verdadeira voz foi o “8 ½” de Fellini). Destarte, a despeito deste problema, sua presença em cena é fantástica, não apenas pela beleza, mas também pelo ar ao mesmo tempo sedutor e desprotegido que consegue atribuir a Aída. Personagem e intérprete, inclusive, tinham algo importante em comum, [SPOILER] já que Cardinale, tal como Aída, era realmente uma mãe solteira, fato que escondeu durante anos com medo da reação do público e da Igreja Católica. Em aparições públicas, seu filho era tomado como “irmão mais novo”, sendo que somente quando ele já tinha 19 anos o segredo foi revelado (o que não causou maiores comoções) [FIM DE SPOILER].

“La Ragazza Con La Valigia” se constitui, desta forma, em uma ótima iniciação na obra deste brilhante cineasta chamado Valerio Zurlini, um nome digno do auge do cinema italiano, quando os longas de Visconti, Fellini ou Antonioni lotavam os cinemas, inclusive os brasileiros (sim, esse tempo já existiu). Se Lorenzo tem na película a sua iniciação amorosa, o espectador pode ter nela o princípio de um caso de amor com a obra de um diretor que pode ser colocado entre os grandes mestres do cinema da Itália. Um artista singular que filmou pouco (além de suas dificuldades para realizar projetos, Zurlini morreu cedo, com 56 anos), mas foi o suficiente para ser definido como o “poeta da melancolia”.


Cotação:

Nota: 10,0
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8 comentários:

Rafael W. disse...

Post interessante, poderiam ser feitos outros como esse.

cinelupinha.blogspot.com/

Jefferson C. Vendrame disse...

Grande Fábio, como esta? Não conheço esse filme, como também conheço bem pouco o cinema antigo Europeu. Seu texto mais uma vez: ótimo. Confesso que senti vontade de ver o filme.

Seu Blog como sempre esta perfeito.

Grande Abraço

ANTONIO NAHUD disse...

Grande momento do mestre Zurlini. Pena que a Claudia, embora tão bela e sensual, nunca se esforce para "assumir" a personagem.

O Falcão Maltês

renatocinema disse...

Assumo: não conhecia o diretor.


Mesmo apreciando muito o estilo de cinema italiano.

Post histórico. Como estudante de história me degustei como nunca.

Wilson Antonio disse...

Como entusiasta do cinema italiano e fã de Claudia Cardinale devo dizer que adorei seu texto. Vou catar esse filme para assitir! Belo texto

Cristiano Contreiras disse...

Também não tinha conhecimento, Fábio...e nunca tinha ouvido falar deste filme, mas seu ótimo texto me deixou bem curioso. A forma como você analisa pontos cruciais e de uma maneira bem apaixonada, fiquei bem interessado! Parabéns também pela selação de imagens que compõe o post, de extremo bom gosto. Bom, você tem o dvd original, certo? Onde encontrou? Não achei o filme pra download, pelo visto é raro e deve ter na Livraria Cultura, correto? rs.

Pesquisei sobre ele num portal, não sei se conhece, chama-se Filmow. Pouca gente conhece por lá também. Aliás, esse portal pode te interessar. É uma espécie de 'orkut dos filmes': adicionamos filmes pra ver, vistos e prediletos. Além de ser uma forma de contabilizar o que vimos, serve pra adicionar pessoas, cinéfilos, e colocar cotações de filmes. Bem legal, se tiver interesse, aqui ó:

http://filmow.com

abs

Fábio Henrique Carmo disse...

Amigos,

Como vários de vocês não conheciam o filme, e atendendo ao pedido do Cristiano, informo que há uma edição brasileira do filme pela Versátil, ótima por sinal, com extras com comentários do Rubens Ewald Filho, críticos italianos e e alguns nomes que participaram da produção. Fazendo uma rápida pesquisa, vi que ele ainda se encontra disponível nos sites da Livraria Cultura e do Submarino. Ah ,e valeu a dica, Cristiano. Abraço a todos!

Sintia Piol disse...

Adoro Claudia Cardinale, é maravilhosa em tudo que faz. Parabéns pelo bom gosto, pela bela escrita e olhar de lince.

Estou amando seus textos.

Um abraço!