quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Django Livre

A escravidão segundo um artista pop


Não há dúvidas de que Quentin Tarantino é um cineasta controverso. Muitos o amam, alguns o odeiam, mas, em geral, este é o preço se paga quando se desenvolve um trabalho extremamente autoral. O adjetivo “controverso” também pode ser aplicado a nomes como Jean-Luc Godard, por exemplo. Contudo, mesmo os críticos de Gordard devem reconhecer a sua importância para a linguagem cinematográfica. E Tarantino, com o seu processo de reciclagem-liquidificador de referências cinéfilas, tem prestado um enorme serviço à Sétima Arte nas últimas duas décadas. Uma das críticas que pairam sobre a obra de Tarantino é seu o excesso de violência. Em alguns casos, acredito que a crítica é válida. Gosto de citar a famosa cena da orelha em “Cães de Aluguel” (Reservoir Dogs, 1992) como exemplo de violência gratuita em sua obra. Entretanto, cabe lembrar que este último foi o seu primeiro longa-metragem na direção, o que nos faz compreender alguns excessos da imaturidade. Por outro lado, em “Django Livre”, seu último filme já em cartaz no circuito comercial brasileiro, há muita violência, mas, pelo menos em boa parte da projeção, não me pareceu gratuita.

Apesar de ser uma mancha presente na história norte-americana, tal como na brasileira, o cinema ianque pouco filmou a escravidão negra, muito embora o tema do preconceito racial seja recorrente em suas produções (como no caso do recente “Histórias Cruzadas”). Uma elipse temática significativa, principalmente quando lembramos que o holocausto promovido pelos nazistas conta com inúmeras produções que retratam seus horrores, uma disparidade que provavelmente é resultado da influência que judeus e afrodescendentes exercem na indústria cultural hollywoodiana. Os primeiros possuem um enorme controle e influência sobre a produção cinematográfica ianque – basta lembrar que Steven Spielberg, por exemplo, é judeu - enquanto negros, em geral, são excluídos do processo de produção e criação, um óbvio reflexo duradouro do passado. Assim, “Django Livre” acaba por se revestir de uma importância bem maior do que de um mero faroeste repleto de tiroteios e cenas violentas. Mostra-se, antes de tudo, como uma tour de force do diretor e roteirista para nos deixar revoltados diante dos horrores da escravidão. Muitos se enganam ao pensar que Tarantino sempre faz cinema apenas sobre Cinema e este me parece o caso mais emblemático em sua carreira que atesta tal afirmação. “Django Unchained” é, primordialmente, um filme sobre escravidão, mesmo que esteja revestido pelo subgênero western spaghetti que tanto influenciou o cineasta.

Começando pelo título e nome do protagonista, o mesmo da película estrelada por Franco Nero em 1966, quase tudo no longa em questão remonta ao subgênero consagrado nas mãos de nomes como Sergio Leone, desde a trilha sonora, até as formas de enquadramento, elementos do roteiro, edição, fotografia e design de produção. Tarantino é fã confesso do faroeste spaghetti (ele já declarou em entrevistas que considera “Três Homens Em Conflito”, de Leone, como o filme mais bem dirigido de todos os tempos) e em ocasiões anteriores, mormente em “Kill Bill vols. 1 e 2” (2003, 2004), já havia demonstrado tal apreço, chegando agora o momento de realizar um trabalho específico do gênero. Se com o mencionado “Kill Bill” ele realizou o seu “filme de artes marciais” e com “Bastardos Inglórios” (Inglourious Basterds, 2009), nos presenteou com seu “filme de Segunda Guerra”, agora é a vez do western, misturando, além da ação típica do bang-bang, uma boa dose de romance.

Mais do que o desejo de liberdade, é o amor que leva Django (personagem de Jamie Foxx, ótimo) a sair da sua condição de escravo para mover montanhas em busca de sua amada. Ele é libertado por um caçador de recompensas, o alemão Dr. King Schultz (Christoph Waltz, impecável!), o qual se compromete a ajudá-lo a encontrar sua esposa, Brunhilde (papel de Kerry Williams), caso Django também o ajude a encontrar criminosos foragidos. Depois de um bom tempo, em que Django se torna um exímio pistoleiro, eles chegam às propriedades de Calvin Candie (Leonardo DiCaprio, também excelente!), um tiranete obcecado por lutas mortais entres negros escravos, os chamados “mandingos”. É lá que está a sua Brunhilde e é de lá que eles tentarão salvar a moça e escapar com vida.

Curiosamente, o alemão Schultz é o personagem mais esclarecido em relação ao horror da escravidão, rejeitando a ideia de que homens sejam propriedade de outros homens. Além disso, Tarantino pescou referências na mitologia germânica para compor seus personagens. Na lenda alemã, Brunhilde é uma valquíria que foi isolada em uma montanha e de lá foi resgatada pelo bravo Siegfried. Seria uma aceno de Tarantino aos alemães depois de vilanizá-los no referido “Bastardos Inglórios”? Talvez, mas não deixa de ser também um atestado de suas múltiplas fontes de inspiração, que não se limitam apenas ao próprio cinema ou à cultura pop descartável. Ao mesmo tempo, Django se mostra um personagem que em nenhum momento se envergonha da própria altivez, possuindo uma consciência inata de que nada o difere dos homens de cor branca. Ele toma as rédeas de seu próprio destino, o que denota a visão do autor de que os negros não foram passivos na luta pela sua liberdade e igualdade, não constituindo suas conquistas apenas uma benesse dos brancos, como por vezes faz supor a ideologia tradicional.

A violência extrema, que exige bastante estômago em certos momentos, apresentada em algumas sequências parece funcionar, acima de tudo, como elemento catalisador que nos gera a consciência do absurdo do processo escravocrata. Todavia, é claro que Tarantino recheia seu filme de plástica, ação e seu peculiar humor, destilado, principalmente, através de seus costumeiros diálogos afiados. Nunca os tiroteios de um bang-bang cinematográfico jorraram tanto sangue na tela, mas também é provável que nunca tenha existido um personagem do gênero western com um discurso tão convincente e elaborado quanto o do Dr. Schultz. A mistureba típica de Tarantino acaba nos levando a uma montanha-russa de sensações, fazendo o público passar da tensão ao riso com facilidade. Pena que o longa acabe se perdendo um pouco no seu último terço. Seu clímax ocorre cerca de 30 minutos antes do fim da projeção, fazendo com que o seu desfecho reste apagado e descontinuado, uma espécie de enchimento de linguiça desnecessário.


Por outro lado, Tarantino mostra-se, como de costume, excelente na direção de atores. O elenco está coeso, entregando atuações memoráveis de Waltz (já premiado com o Globo de Ouro), DiCaprio, estranhamente esquecido pela Academia de Hollywood, e do protagonista Jamie Foxx, também deixado de lado nas premiações do ano. Entretanto, o caso mais estranho parece ser o de Samuel L. Jackson, antigo parceiro de Tarantino. Ele tem aqui sua melhor atuação em muitos anos, na pele de um repugnante caseiro que é o mais racista dentre todos os tipos da narrativa, vivendo na “casa grande” e oprimindo os demais escravos (aqui no Brasil, podemos traçar uma convergência com os feitores negros que perseguiam e torturavam escravos). Não obstante, sua atuação vem sendo pouco comentada até mesmo pela crítica. Uma injustiça que carece de boas explicações. No mais, Tarantino preenche a projeção, como de hábito, com participações especiais, como a de Jonah Hill (hilária, por sinal), e ainda a de Franco Nero, perguntando a Django como se pronuncia o seu nome. Dentre os aspectos habitualmente marcantes na obra do cineasta, a trilha sonora é a que se mostra menos inspirada, apesar de contar com o tema original de Ennio Morricone para o Django dos anos 60. Não que a trilha seja ruim, mas talvez estejamos mal acostumados com o uso excepcional da música em outras oportunidades, e aqui ela não se mostra tão especial.

“Django Livre”, com certeza, não é o melhor filme de Quentin Tarantino. Teria se saído melhor se tivesse sua metragem reduzida em uns 30 minutos como já destacado. Contudo, trata-se da obra em que o diretor deixa mais claro ao espectador sua verdadeira pretensão, que, no caso, é a de nos fazer lembrar que a escravidão foi uma passagem terrível da história da humanidade e, tal como os horrores da Segunda Guerra Mundial, jamais deverá ser esquecida. Tarantino pode ser um cinéfilo viciado, mas não um alienado que usa sua arte apenas para referenciar a própria cultura pop. Aqui, ele se revela um engajado cheio de talento. Um virtuose da imagem que retira a poeira de uma temática difícil em um país que, apesar de hoje ter um presidente negro, ainda precisa curar suas feridas.


Cotação:
Nota: 9,0
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4 comentários:

renatocinema disse...

Amei sua visão e concordo com seu texto.

Foi o amor que moveu o personagem....perfeito.

Abraços

Unknown disse...

Ótimo texto. (spoiler) Contudo, acredito que o climax meio a hora antes do final, seja necessário. Digo isso, pq ao meu ver, a morte de Schultz é interessante partindo do ponto de vista que Django (como negro) deveria realizar sua vingança sozinho e não apoiado pela ajuda de um branco, ainda que amigo. Gostei muito da cena em que Tarantino apareceu (o diretor ficou o tipo personagem de John Wayne) e a sequencia quando Django volta é o melhor tiroteio do filme. Também concordo que Django não seja o melhor filme do diretor, mas ainda assim, é muito superior a média de filmes americanos. Aquele abraço!

Renato Oliveira disse...

É realmente uma boa discussão sobre o tema/uso da violência nos trabalhos dele. Penso que a polêmica em torno deve ser mesmo relacionada com fatos históricos que causam realmente horror em muitas pessoas quando representados no cinema. E curioso também pensar que mesmo em épocas de não-guerra quantos são violentados simbólicamente todos os dias. E quero ver este filme. (=

Abraços
www.cinefreud.com

Maxwell Soares disse...

Que texto maravilhso, Fábio. Elucidativo, coeso e bem escrito. Li em outro blogger e percebi qeu você, aqui, fez referência não tão atraente a respeito da trilha. Algo que merecia ser mais elaborada. Ver Dicaprio, às vezes, esquecido é uma injustiça. Sou fã do talento deste ator. O último filme que vi com a participação dele foi J Edgar. Mas o que mais fiquei impacatado foi com o filme de Sam Mendes - Foi apenas um sonho. DiCaprio arrebenta. Ontem estive falando com meu pai a respeti deste filme. Ele é fã do gênero. Estou aprendo a gostar. Fiz, no Sapere Aude, uma postagem com esta linguagem. E estou tomando gosto pelo gênero. A respeito do diretor tenho, também, o mesmo conceito. Ele é diferenciado. Ousado e preciso. Gosto da maneira como ele materializa as suas ideias na tela. No mais um abraço e, volto a dizer, parabéns pelo excelente texto rapaz. Valeu...